Uma ode a Enheduana

A coisa mais bonita da história do mundo aconteceu quatro mil anos atrás.
Esse texto é uma mistura entre fatos históricos confirmados, extrapolações ou suposições prováveis (tomadas como fato para simplificar ou por capricho), bem como manifesto poético mais interessado em impacto do que em ser burocraticamente “correto”. Deixo isso como ressalva para avisar que, inspirado em história real, não é história real que aqui estou escrevendo. Vou me deixar levar e exagerar um pouco. Vejam como um exercício poético.
Isto dito, vamos lá.
01. O mundo sumério

Os tempos e lugares dos sumérios, especialmente no apogeu deles, fizeram parte de uma das mais antigas civilizações da história.
Este mundinho antigo viveu um longo período de relativa estabilidade no qual se desenvolveu numa sociedade complexa. Foi insular durante boa parte do início de seu desenvolvimento pela ironia curiosa de seu atípico avanço estatal-burocrático-literário o isolar de seus vizinhos.
Afinal, os sumérios estiveram “entre os primeiros” em muitas coisas, o que quer dizer que até outros chegarem estiveram também durante algum tempo “entre os únicos”.
A geografia da região (rodeados por montanhas e desertos, longas viagens até qualquer outra cidade próxima de outra cultura) também contribuiu para esse lugar próprio que no geral foi distinto em identidade e personalidade de seus vizinhos e de seus sucessores.
Por seu apogeu ter se dado bastante antes do surgimento de concorrentes relevantes, teve a oportunidade de fundar certos marcos civilizatórios: burocracia de estado, civilização complexa sedentária, tecnologias agrárias estruturando exércitos e instituições simbólicas, um discurso nacional vinculado a líderes militares e religião, bem como a tecnologia da escrita.
Esta escrita a princípio foi utilizada de forma muito objetiva, burocrática e pragmática para organização de recursos e processos: quem enviou grãos pra quem, quem cobrou cobre de onde, o que o líder de uma cidade estava pedindo para o lider de outra. Junto a isso, de forma inicialmente insipiente foram surgindo funções mais simbólicas: registrar os nomes de líderes e suas conquistas militares, estruturar normas, detalhar características de deuses, cantos religiosos, rituais.
Por isso que inventaram essencialmente do zero nesse período das criações originais, os sumérios continuaram sendo vistos como sábios mesmo pelos povos que mais tarde viriam a subjulgar suas cidades, anexando a região a novos impérios mais vastos. E por essa reputação e inspiração cultural-tecnológica que levaram até aos seus próprios conquistadores, tiveram um papel fundador e influente na base mais profunda de uma série de culturas que vieram depois.
Comparações esdrúxulas, mas didáticas: sumérios “clássicos” estão para os impérios babilônico e assírio mais ou menos como estiveram os gregos clássicos para os romanos. Ou seja, eram um povo visto como “tendo sido”. Foi grande um dia, o maior um dia, o mais inteligente um dia, mas foi conquistado. Os romanos que se apaixonaram pela cultura do “grego clássico” de um Platão eram os mesmos que viam seus gregos contemporâneos como inferiores. E algo semelhante a esse complexo de admiração/inferioridade (pelos de antes) e desprezo (pelos de agora) aconteceu com os sumérios também.
Muita coisa dos sumérios, portanto, foi integrada e assimilada por essas cultura seguintes ao ponto de apagar-se a origem, embora ecos de uma reverência ao original tenham seguido nas rebarbas. A escrita como prática, a burocracia dos escrivões, funcionamentos burocráticos, certas entidades mitológicas.
E, entre esses legados, Enheduana.
02. Vida e obra de Enheduana

Para o auge do período sumério clássico, Enheduana está mais ou menos posicionada como Homero esteve para os gregos.
Ou seja, na posição perfeita para presenciar o surgimento de algo tão grandioso e em seu tempo tão jovem quanto a escrita, possuindo todo o material bruto de séculos (milênios?) de história oral da sua civilização para “passar a limpo”.
Depois de já muuuuuito tempo (séculos) em que a tecnologia de escrita vinha sendo usada basicamente para escrever elogios a reis e deuses, ou para contar grãos, foi ela quem pela primeira vez pensou “e se eu distorcer essa tecnologia burocrática-sagrada-estatal para também falar dos meus sentimentos e escrever poesia autoral? E se eu observar minha voz lírica como algo particular o suficiente para merecer ser assinado com meu próprio nome?”.
Então Enheduana inventou a poesia lírica. Inventou a poesia confessional. Inventou a performance poética. Mais do que tudo, inventou a si mesma: a poeta, a primeira. Eu-lírico, invenção dela. Poemas sem assinatura até já existiam, como cantos religiosos principalmente, ou canções sobre conquistas militares, até mesmo como narrativas mitológicas. O que ela inventou foi a pessoa que escrevia esses poemas.
E como ela fez isso, e o que aconteceu depois com isso que ela fez, que é a coisa mais bonita da história do mundo.
Enheduana viveu por volta de 2285 a.C. a 2250 a.C. Era filha de Sargão da Acádia, outra das figuras famosas do período. Na mesma parte da Mesopotâmia, a Acádia correspondia mais ou menos ao norte enquanto a Suméria correspondia ao sul. Era no sul que os sumérios já tinham estruturado burocracias, cidades, escrita.
Quando Sargão consolidou seu domínio sobre o sul da Mesopotâmia, estava lidando com um povo “conquistado” que em diversos sentidos era mais avançado do que o seu próprio. Por isso, em vez de uma simples imposição de cima para baixo do acádio ou de uma “importação” integral do sumério, o império estabilizou-se em um sistema bilíngue de prestígio: o acádio tornou-se cada vez mais a língua da administração imperial e da literatura, enquanto o sumério perdurou como língua litúrgica e erudita de alto registro em templos e escolas de escribas.
Com isso, o império ajudou a preservar o sumério como língua de culto e de saber mesmo em áreas onde ele já não era falado. Outra comparação esdrúxula, mas didática: foi mais ou menos o papel do latim na cristandade ocidental medieval.
Um dos atos mais interessantes dessa estratégia de hibridização cultural foi constituído com a própria Enheduana, nomeada como sacerdotisa de Nanna em Ur (uma posição política tanto quanto religiosa, não se dividia isso ainda). Ur era talvez a cidade mais simbólica dos sumérios e Nanna (um raro deus lunar masculino) era talvez a entidade suméria mais importante para Ur. O slogan era mais ou menos este: uma mulher acádia servindo a um deus sumério. Algo muito diplomático, aliás.
A própria Enheduana, apesar do “cargo”, parecia mais intimamente ligada com Istar/Inana (por sua produção literária inclusive). Essa devoção também parece mais apropriada dado seu lugar simbólico de conexão entre povos: Inana (suméria) e Istar (acadiana) foram fundidas em uma única entidade sincrética, reunindo pontos em comum (e já eram ambas muito parecidas, podem ter surgido de uma raiz única anterior).
Durante o período de Enheduana, portanto, o fato dela escrever cantos em louvor de Inana, mesmo estando em Ur, é mais ou menos como se ela estivesse optando por algo local, com “sotaque sumério”, que existia numa versão um cadinho só diferente (enquanto Istar) na Acádia de onde ela tinha vindo.
Consigo imaginar facilmente que tudo que envolvia Nanna (o grande deus lunar dos sumérios que seu cargo “obrigava” Enheduana a cultuar) fosse uma missão diplomática/burocrática, um trabalho no sentido mais pragmático. Menos uma paixão, mais algo que ela fazia de acordo com as estratégias políticas do império do pai. Em contraste a isso, imagino que tudo que envolvia Inana/Istar era para Enheduana mais íntimo e subjetivo. (Mais ou menos como é comigo entre escrever enquanto redator pra ganhar dinheiro ou escrever poemas e, bem… Textos como esse.)
É por isso que as mais bonitas poesias de Enheduana são para Inana.
E é por isso que a poesia mais famosa dela, a poesia que é a coisa bonita de todas, foi feita como um apelo íntimo num momento de crise para sua deusa de preferência e intimidade, Inana (deusa do amor, da guerra e da fertilidade).
O que passa pelos detalhes históricos é difícil de entender concretamente, mas sabemos ao menos o mínimo: o império do pai de Enheduana esteve em crise durante um período no qual Enheduana foi expulsa do seu cargo e de sua cidade. É muito provável que a contenda envolvesse uma insurgência organizada contra o império de Sargão.
Exilada durante a crise, destituída de seu posto de alta-sacerdotisa e incerta sobre o futuro da própria vida, bem como sobre o possível fracasso e morte também de seu pai, Enheduana escreveu Nin-me-šar-ra.
É seu poema mais famoso.
Suas obras foram uma inovação estética absoluta. Na literatura mundial, são os mais antigos exemplos sobreviventes de uma voz autoral em primeira pessoa (até onde sabemos).
Sei que é o anacronismo pode deixar acadêmicos bravos comigo, mas fico tentado a dizer (e, já que chamei este texto de um “exercício poético”, vou ceder à tentação) que o que ela fez poderia muito bem ser lido como a primeira poesia confessional da história do mundo.
03. O Nin-me-šar-ra

O poema tem mais ou menos 150 versos (é longo) e foi traduzido diversas vezes por diferentes autores.
Como todos os textos sumérios, basicamente a cada par de semanas durante décadas encontraram novas tabuinhas de argila que adicionaram um trecho até então perdido, ou aumentaram a ambiguidade sobre um termo até então dado como certo (normalmente as duas coisas aconteciam juntas).
É portanto um texto vivo, extremamente distante de uma leitura “fechada” que possa se dizer “oficial” ou “absoluta”. Dado o abismo cultural/linguístico que nos separa de sua escrita e de seu contexto original, é muito provável que vá seguir assim para sempre. Você lê vinte traduções diferentes de vinte acadêmicos diferentes, cada um deles defendendo uma interpretação diferente para cada uma das palavras de cada um dos cento e cinquenta versos. E no meio de tudo isso você vai esculpindo pelos detalhes e pelos espaços vazios o que o poema de verdade pode ter sido.
É como ler o mais próximo que existe de um texto extraterrestre, feito absolutamente num outro mundo, só que ao mesmo tempo esse outro mundo é a semente de passado que inspirou e influenciou todo o mundo que você conhece como consequência seguinte.
Você escuta, por trás de todas as versões, gritar a mesma voz de Enheduana, uma voz humana e próxima de um jeito que parece antinatural que exista num texto tão antigo.
(Ainda mais se você, como eu, fica obcecado por ler textos antigos e não encontra nunca nada sequer próximo ao intimismo de Enheduana em nenhum deles, em ninguém mais durante milênios depois dela.)
E a história que essa voz conta, depois que você leu mil versões do poema, começa a ficar mais simples de tentar explicar/aproximar do que qualquer ambiguidade técnica sobre algum verso em particular.
Então:
A tradução mais aproximada de Nin-me-šar-ra é algo como “senhora de todos os mes”, um dos títulos dados a Inana. Para a mitologia dos sumérios, um “me” é algo como um dom que pode ser transferido (e não só como poder individual, também enquanto instituições e ordens sociais, como a realeza, a sabedoria, leis, artes/ofícios, dons de música, etc.). Do jeito mais simplista que posso tentar explicar: como se algo como “inteligência”, enquanto qualidade, estivesse dentro de uma orbe que vai dar seu “poder” a quem possuir tal objeto.
Essa orbe pode ser dada, apostada, roubada. Inana era exaltada por ter “vários mes” como um jeito de dizer que tinha várias habilidades/prerrogativas — algumas pessoais, outras institucionais — que conquistou de formas diversas. Ela era a própria deusa dessa dinâmica “transacional” dos mes, porque muitos dos que tinha foram roubados/recebidos/conquistados/apostados com outros deuses. Um dos meus mitos favoritos conta Inana engambelando outro deus ao deixá-lo bêbado para roubar vários mes dele.
Apesar dessa ideia de “senhora de todos os mes” ser a tradução literal do nome do poema, ele costuma hoje ser comentado com o título de “Exaltação a Inana”. É esse o título de duas das melhores traduções que já achei, essa primeira aqui e essa segunda acolá, ambas só em inglês (essa segunda é o link único mais sensacional que encontrei sobre o poema na Internet).
Outra tradução famosa, mais antiga, é essa aqui que chama o poema de “senhora de incontáveis poderes cósmicos”, mais aproximado à ideia de “Nin-me-sar-ra” que ficou convencionado como título porque são as palavras que abrem o poema.
A poesia é semelhante em fundamento narrativo independentemente de todos os tantos tradutores. Isso é parte da magia: para além das divergências, dá para se argumentar que aquilo tornado compreensível para leitores modernos é que Enheduana fez algo que podemos considerar uma poesia confessional e narrativa.
É muito esquisito como isso acontece porque é difícil explicar exatamente em quais dos versos em particular essa narrativa confessional está especificamente inserida. Mas quanto mais você mergulha no texto, na cultura suméria, nos desafios de tradução, mais você vê a história vazando de todos os lados.
É por isso que eu conto sobre o poema, ao invés de copiá-lo meramente na íntegra, ou de separar vários trechos para tentar explicar cena a cena.
04. Um pedido e um encanto profético do exílio

A narrativa é basicamente essa:
Exilada durante a crise do governo do pai, Enheduana escreve poesia confessional lírica, narrativa, religiosa, também um lamento diplomático, sobre como sente sofrimento diante da situação inaceitável de ter sido removida do seu cargo de sacerdotisa no templo em Ur. Ela exalta Inana dando diversos de seus feitos mitológicos como exemplos de seu poder, para convencer assim Inana a barganhar em seu favor com o pai da deusa, An.
É um pedido por auxílio escrito no que deve ter sido o pior momento da vida dela, estruturado por uma lógica religiosa/militar ao mesmo tempo, e articulado numa voz que mistura (de um jeito inacreditável) a fúria visceral do militarismo da idade do bronze (“arrebente crânios dos adversários!”) com linguagem lírica de oração (a fé cantada melancólica num momento de desespero, buscando na beleza estética o auxílio de uma deusa com quem Enheduana se sentia íntima).
Tem também um tique de argumento jurídico de defesa, meio que num tom burocrático (como se estivesse participando de um grande tribuinal, pedindo para Inana ser sua advogada). E finalmente temos, contrário a isso, a vulnerabilidade confessional que parece sobrenatural em um poema tão antigo (“eu sofro, eu, Enheduana, que estou exilada e pedindo auxílio”).
Sim, tudo isso de uma só vez no poema assinado da poeta mais antiga do mundo a ser reconhecida por um nome.
Ufa.
Porque a linguagem é tão removida da nossa e as metáforas são tão intrincadas, fica difícil para mim sequer tentar falar dos trechos que mais gosto, mas vou tentar explicar só um porque demonstra bem todo o problema. Então lá vai o trecho que mais gosto, numa tradução aproximada (veio versão em inglês daqui, feita por Helle, que passei pro português como achei melhor e com muitas liberdades).
É a penúltima seção do poema.
Nesse ponto da narrativa, Enheduana argumenta que An, o grande deus do panteão sumério, não decidiu sobre a questão de salvar ou não Enheduana de seu exílio, ou de restaurar o reino do pai dela. Então, o grande deus abriu espaço para que Inana tomasse a decisão.
Como metáfora e retórica, isso quer dizer várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, que o destino ainda é incerto, que o futuro ainda é aberto (An não se decidiu); segundo, que está sendo dada a honra a Inana de decidir a questão; terceiro, que Inana devia, por favor, intercedor de forma favorável a Enheduana porque o poema estava sendo escrito como uma obra para tornar pública a beleza da deusa. Há inclusive a sugestão de que An só ficou em cima do muro porque o poema de Enheduana o emocionou (vou voltar a isso já, já).
De novo, uma mistura de desespero, linguagem de tribuinal e complexidade do panteão religioso.
Enheduana passa vários versos exaltando Inana com vários dos seus títulos. Ela diz algo como:
que se saiba que você é tão poderosa quanto o céu, que se saiba que é tão vasta quanto a terra, que se saiba que voce destruiu a terra rebelde, que se saiba que você rugiu contra a terra dos inimigos, que se saiba que você esmagou cabeças, que se saiba que você devorou corpos como um leão, que se saiba que seus olhos são furiosos, que se saiba que seus olhos furiosos você levantou, que esses seus olhos são de todas as cores, que se saiba, e que se saiba que vocé é obstinada e não se curva a ninguém,e que você permanece triunfante, que se saiba;
(Versificação simplificada, livre e interpretativa da tradução em inglês, esta desleitura portanto autoral por minha parte.)
Isso é só contexto, não é nem meu verso favorito ainda.
Mas é essa listagem dos tantos “que se saiba”, no fim, que acaba construindo o papel do poema como um objeto mágico de utilidade também para a deusa (pois a vangloria e divulga seus poderes).
É o poema, nesta lista de poderes e exaltações a Inana, que comove An a abrir espaço e deixar a deusa decidir a questão. É como se a deusa Inana só ganhasse essa oportunidade por interceção do pedido desesperado de Enheduana estar em um poema bonito demais que emocionou ao seu deus-pai. Aqui Inanna ganha autonomia, emancipação da figura divina paterna, através das palavras de uma mulher mortal.
Logo depois da lista do “que se saiba”, o silêncio de An, quase como uma contemplação poética, dá espaço para o fechamento da ideia.
E daí entramos no momento que é para mim o mais bonito (outra vez uma tradução simplificada/livre/interpretativa minha):
o deus Nan nada disse,então seu silêncio a Inana garantiu e expressou: “o assunto é seu”minha senhora Inana, isto a fez grandiosa, isso a fez poderosa, minha senhora, amada por An, vou cantar sobre sua fúria, eu organizei as brasas e realizei o ritual, o seu templo está pronto para você,seu coração vai se reconciliar comigo? e como meu coração estava repleto, transbordando dor, eu dei à luz a este poema por ti;poema este que te cantarei na hora de dormir e que um cantor do templo lhe repetirá ao meio-dia;e o cantor do templo, ao lhe cantar com refrão de seus lamentos, diz que por causa de teu esposo cativo, por causa de teu filho cativo, a tua raiva cresce, Inana, e teu coração não está feliz;
Este trecho é lindo. É a coisa mais bonita do mundo. Ele, sim. Esse aí.
Mas porque esta beleza está escondida embaixo de milênios de distância, pode ser difícil entender como ela funciona sem ficar obcecado na poesia suméria, particularmente nesta de Enheduana, como eu fiquei.
Então quero tentar explicar porque acho tão bonito.
Primeiro, este verso encerra a voz da própria Enheduana no poema. O poema continua depois, mas ele muda de foco. É como se estivéssemos ouvindo a “primeira pessoa” de Enheduana até aqui, cantando seu lamento, e em seguida entra um narrador que explica as consequências que o lamento teve. A frase que começa a seção seguinte impessoalmente diz que “a senhora poderosa, respeitada na assembléia dos deuses, recebeu sua poesia/oração/lamento; assim, o coração sagrado de Inana à deusa retornou; a luz a agradou e ela se encheu de encanto, de deleite apaixonado”.
Aqui retorna a narrativa, portanto: a poesia de Enheduana teve o poder de conquistar o carinho de Inana, também teve o poder de conquistar a admiração de Nan, deus este que por sua vez deu espaço para que Inana tomasse uma decisão a respeito do caso. E por ganhar essa oportunidade junto ao pai (tanto quanto por gostar do poema), Inana assim intercedeu favoravelmente a Enheduana. A deusa agradece ao pai e à mãe (o pai An, a mãe que costuma ser considerada Ningal, pouco presente no poema) e aparece a imagem de um batente de porta dizendo “boas-vindas”.
Esse “boas-vindas”, junto à frase seguinte, são ambivalentes pela tradução e pela simbologia de um jeito que torna a ideia mais bonita ainda (minha tradução/leitura de novo):
o batente da porta dizia: bem-vinda! o discurso dela para a poderosa senhora do templo foi poderoso.
Não dá para saber, neste trecho, se as “boas-vindas” são para Inana, que é recebida no alto escalão das decisões junto a seu pai e mãe por conta da força do poema, como se fosse “tornada adulta” e emancipada naquele contexto, ou se são “boas-vindas” para a prória Enheduana que, nesse momento, recebe pela beleza de sua poesia o prêmio de ser salva de seu exílio.
O termo que traduzi aqui por “poderosa senhora do templo” em sumério era nugig. Era utilizado como um dos epítetos de Inana, um de seus nomes, como se fosse a grande sacerdotisa dos templos que a cultuavam. Ao mesmo tempo, era usado para descrever cargo/status, uma posição de poder nos templos, e era exatamente esta a posição que Enheduana ocupava.
Ou seja, a frase pode querer dizer duas coisas:
Primeiro, que o discurso de Enheduana para Inana foi poderoso porque exaltou a deusa ao ponto em que ela recebeu abertura do pai para tomar a decisão numa questão séria (o exílio de Enheduana).
Ou então que o discurso da própria Inana, em reação à poesia, foi poderoso, o que fez com que Enheduana fosse salva do exílio.
E esta é a imagem de fechamento da poesia toda.
Uma espécie de vínculo mútuo, de contrato com benefícios partilhados, entre poeta Enheduana e deusa Inana. Ao final, a poesia feita engrandece ambas. A poesia por si, enquanto objeto de exaltação, beneficia cada uma delas de uma forma diferente.
Depois disso, o último verso do poema repete e encerra seus motivos e temas (uma última vez remixado por mim):
destruidora das montanhas, a quem todo este me foi concedido por An, minha senhora, envolta em deleite: que para você haja louvor!
Deixo o comentário de que aqui pode ser subentendido que o poder de escolha que An concedeu a Inana foi em si mesmo percebido como um ganho, um me. Portanto nesse caso Enheduana adiciona um me novinho que a deusa ganha para sua “coleção” diretamente através da ação humana de Enheduana: poesia.
05. Interpretação, distorção e profecia

Acaba assim na página, mas a razão para ser bonito continua muito além.
Retomando algumas linhas do trecho que acho mais bonito de todos, o pedacinho mais bonito do que era aquele trecho mais bonito do poema mais bonito já feito na história desse mundo:
e como meu coração estava repleto, transbordando dor, eu dei à luz a este poema por ti;poema este que te cantarei na hora de dormir e que um cantor do templo lhe repetirá ao meio-dia;e o cantor do templo, ao lhe cantar com refrão de seus lamentos, diz que por causa de seu filho cativo, por causa de sua criança cativa, a tua raiva cresce, Inana, e teu coração não está feliz;
Aqui, existe uma metáfora que é linda.
É um dos trechos finais da “voz real” de Enheduana no poema e o que ela está dizendo é basicamente o seguinte:
“Eu, Enheduana, pari uma poesia linda para você, Inana, a partir do transbordar daquilo que sinto. Este poema que fiz vai transformar você, Inana, imortalizando seus feitos no mundo e encantando inclusive você mesma com sua própria beleza, tanto quanto encantará ao teu deus-pai que por este poema cederá espaço e poder de escolha para ti. “
E o mais bonito está na imagem de que o poema será cantado por Enheduana durante a noite e que será repetido no dia seguinte ao meio-dia por um cantor do templo (no original, o termo para quem cantaria depois era gala, literalmente um cargo de cantor de lamentos em rituais, normalmente ocupado por alguém de terceiro gênero, ou por um homem).
O que isso sugere é que aquilo escrito por Enheduana se cristaliza numa tradição: algo que se tornará imortal porque restabelece o lugar de Enheduana no mundo, porque expande o lugar de Inana tanto junto aos deuses quanto junto aos humanos, porque é um poema tão bonito, mas tão bonito, que foi suficiente para transformar para melhor tanto o destino da mulher (Enheduana) quanto da deusa (Inana).
E o mais bonito ainda? O que torna bonito ao ponto de ser inacreditável?
O que aconteceu depois.
A crise militar passou. Sargão, o pai de Enheduana, voltou ao poder. Enheduana recuperou seu cargo como sacertotisa de Nanna no templo de Ur. Não sabemos como ela morreu, mas sabemos que não há outros lamentos sofridos sobre exílios depois desse. Parece ser o caso, e prefiro acreditar nessa versão, que Enheduana seguiu como sacerdotisa em Ur durante um período de estabilidade até morrer. Ela parece ter vivido uma vida produtiva, inclusive pela quantidade de textos dela que foram encontrados.
A poesia de Enheduana se tornou texto base para uma série de escritores posteriores aprenderem a ler e a escrever. Quando os sumérios foram conquistados e sua língua e seu sistema de escrita se expandiram ao redor de outros impérios, a poesia dela foi junto. Há cópias e adaptações de Enheduana em cidades sumérias, acádias, babilônicas, assírias.
E daí, a tradição foi se perdendo. Enheduana foi sumindo conforme cidades caíam. Suas tabuinhas foram enterradas na terra entre ruínas de cidades que foram destruídas. Ela foi esquecida e perdida por milênios.
Enquanto a poetisa estava perdida, sua deusa Inana seguiu mudando.
Como tudo nos sumérios, o quanto e como as influências deles foram se moldando o que veio mais tarde é difícil de precisar. Se sabemos que a poesia suméria é anterior tanto a Homero quanto à toda mitologia semítica que veio depois, podemos considerar que a poesia suméria deve em alguma medida, de algum jeito, ter influenciado e sido até um pouco embrionária tanto à Odisséia quanto à Bíblia. No sentido mais estrito, considerando que sumérios inventaram escrita e poesia (pelo menos no evento de criação da escrita, entre os três ou quatro independentes considerados, que mais influenciou línguas e sistemas posteriores), qualquer um depois estava remetendo a eles ao escrever qualquer coisa, soubesse disso ou não. E para além disso, podemos estruturar alguns paralelos mais óbvios do que outros.
Há um eco notório e muito comentado em mitologia suméria sobre dilúvios e mitologia semítica posterior com a mesma imagem (notadamente em Noé); há uma clara linha de influências que liga Inana (suméria) a Istar (Acádia, daí Babilônia e Assíria), daí a Astarte (entre os fenícios e cananeus), desembocando de tudo isso na Afrodite dos gregos e na Vênus dos romanos.
Os embates religiosos entre diferentes grupos semíticos já estruturava, desde o surgimento dos primeiros judeus monoteístas, uma releitura de Inana como um demônio. Onde o monoteísmo ganhava força, ela passava a ser vista como uma ilusão frente à inovação (à época) de um novo deus monoteísta. Algo comum de acontecer no contexto religioso da idade do bronze: o novo deus dos judeus estava competindo por atenção (e capital simbólico no campo religioso) contra essas entidades mais antigas, a princípio mais conhecidas e consolidadas. Era normal que povos transformassem os deuses de povos rivais em demônios dentro de seus próprios panteões.
O movimento ficou mais forte quando o cristianismo ganhou força. A mesma resistência que classificou Vênus, a “descendente” de Inana, como uma “ilusão pagã”, foi aquela que recuperou o que sobrava do culto da original ainda presente na Fenícia e em Canaã. Astarte, o último nome da deusa nas tradições originais, foi recuperada dos judeus antigos pelos demonologistas medievais na desleitura criativa de Astaroth.
Milênios separam a deusa feminina Inana do demônio masculino Astaroth. No caminho há imperíos ruindo, disputas religiosas, novas religiões monoteístas surgindo, infinitas traduções em infinitas bibliotecas.
O que era “a deusa” provavelmente virou “o demônio” por um trocadilho no hebreu que, para vincular a pronúncia de “Astarte” ao termo de sua língua para vergonha (boshet), acaba por transformá-la como efeito secundário em algo masculino. É simbólico e curioso que o mesmo ato que insere o conceito de “vergonha” em seu nome seja aquele em que ela é demonizada e deixa também de ser vista como feminina.
É como demônio, como o Ashtoreth/Astarote, que Inana aparece no Antigo Testamento da Bíblia:
¹² E deixaram ao Senhor Deus de seus pais, que os tirara da terra do Egito, e foram-se após outros deuses, dentre os deuses dos povos, que havia ao redor deles, e adoraram a eles; e provocaram o Senhor à ira.
¹³ Porquanto deixaram ao Senhor, e serviram a Baal e a Astarote.
¹⁴ Por isso a ira do Senhor se acendeu contra Israel, e os entregou na mão dos espoliadores que os despojaram; e os entregou na mão dos seus inimigos ao redor; e não puderam mais resistir diante dos seus inimigos.Juízes 2:12–14
E aparece justamente como uma tentação dos israealistas a se vincular a um deus/deusa dos povos ao redor. Os israelitas que se vinculam a Inana, portanto, àquela tradição cultural de onde surgiram todas as raízes de todas as mitologias semíticas (inclusive a monoteísta), são aqueles israelitas severamente punidos.
Desse papel já como menção bíbliaca, foi então que a demonologia construiu Astaroth como uma figura de sua própria mitologia durante o medievo. Na transição do medieval para o moderno, o que tínhamos de seu legado eram algumas raras menções em textos antigos, as críticas feitas na bíblia e a versão demonizada que sobreviveu principalmente na reunião de textos de demonologia ditos “salomônicos” (também feitos durante um longo período, mais ou menos dos séculos 14 ao 17).
Em algumas versões, Astaroth virou um termo básico para “demônios” no gera; o mais provável é que tenha sido mais um deslize de tradução que tornou o plural Astaroth, a partir do singular Ashtoreth (“a” no lugar de “o” dava a ideia de vários) num novo indivíduo singularizado.
O verso bíblico de Juízes, por exemplo, carrega essa ambivalência até hoje: a versão em inglês diz “ashtoreths”, considerando um plural para demônios, enquanto a versão em português individualiza numa entidade singular, Astarote.
06. Astaroth, a versão dos grimórios

O mais famoso desses textos é o Lemegeton, um grimório de magia cerimonial ocidental organizado em meados do século XVII.
É como se, através de todos os tabus, de toda a restrição e opressão cultural para unificar nações, de todo o monopólio religioso ao longo de eras, Inana tentasse ressurgir volta e meia em ecos, pelas lacunas, sendo deformada pelo processo não porque ela mesma era distorcida, mas porque eram distorcidos os tempos em que se tentava expressá-la.
O que os textos esotéricos dessa época fizeram sem perceber foi começar a vincular
a origem semítica do próprio cristianismo (que por sua vez é vinculada por fundamento aos sumérios, que foram anteriores e influenciaram fortemente os semíticos mais tarde);
uma releitura e novo contato com os textos árabes e europeus antigos sobre alquimia, astrologia e magia, coisas que os europeus começaram a trazer de volta para o ocidente a partir do renascimento islâmico;
O Astaroth da demonologia é, portanto, tanto eco bíblico do Astarote mencionado no Antigo Testamento, quanto um contato com a deusa Astarte, talvez Istar, que os europeus recuperaram através da literatura árabe. Talvez algum escolástico, comparando pergaminhos num mosteiro, tenha sido o primeiro a reparar nesse vínculo…
A semente dessa nova versão de Inana, ao mesmo tempo um exagero final ao desrespeito de sua figura e uma primeira rachadura na “caixinha/demônio” em que a mantiveram presa durante milênios, estava já nas nases do renascentismo europeu e do iluminismo que veio depois.
No século 19, com o secularismo consolidado irompendo, mesmo o demônio Astaroth não era visto mais como algo a ser evitado a todo custo, com o risco de punição da fúria divina do deus monoteísta bíblico em caso de qualquer contato. O que os ocultistas cristãos desde o medievo estavam construindo pouco a pouco, e que grimórios como o Lemegeton e o Dictionnaire Infernal terminaram de burocratizar e disseminar, era um caminho para a interação, para o diálogo e a barganha.
Presa num círculo, com orações a Deus e a todos os arcanjos da religião monoteísta, transfigurada em demônio por milênios de difamação, mas Inana aparecia de novo como força que merecia voz, contato, vínculo em alguma medida (mesmo que fosse para tentar obrigá-la, com um arcanjo ao seu lado olhando feio para ela, que a deusa/demônio te fizesse ficar rico).
Foi essa a versão dela que eu conheci primeiro.
07. Internet anos 2000: Habbo Hotel, fóruns, torrents e .pdfs

Aos quinze anos, achei pela Internet um arquivo zipado de gigas e mais gigas de material mitológico e religioso.
Havia dicionários de símbolos, as obras do Crowley, uma série de livros de mitologia dos mais variados povos. No meio tinham os grimórios medievais e a menção a Astaroth. Achei curioso. Como um rebelde adolescente que atendia no Habbo Hotel pelo nickname Rodlucifer666, grupos digitais e alguns amigos em particular já vinham me circundando pra falar de coisas como goétia, um sistema ritualistíco basicamente inspirado nos textos de demonologia salomônica. E como um adolescente radical, eu fui me envolvendo pra ver onde ia dar.
Aos quinze anos, tentei fazer um ritual para Astaroth. Eu fiz um círculo de pano verde com o símbolo do grimório, cartolina que comprei na papelaria pra um triângulo, usei uma velinha verde, uma roupa preta qualquer. Não fazia ideia nenhuma de que existia Inana, nem Enheduana. Pedi conhecimento e amor sem saber que estava fazendo isso para uma distorção ecoada por milênios do que tinha sido originalmente uma deusa feminina vinculada ao amor (vide inclusive sua associação com Afrodite), bem como vinculada à primeira escritora com nome, no contexto da civilização que inventou a escrita.

O desespero da poeta Suméria no exílio a levou a um ritual com Inana para ser salva. O meu desespero na adolescência do início dos anos 2000 com acesso irrestrito à Internet me levou a um ritual com Astaroth para tentar passar de ano sem estudar e arrumar uma namoradinha sendo feio.
Ela provavelmente fez o poema dela em um templo menor, sóbrio e poético, escondido talvez junto a um oasis em alguma margem remota do deserto mesopotâmico, um lugar escolhido por generais de seu pai especificamente para protegê-la com alguns dos seus funcionários durante um período de guerra.
Eu fiz meu ritualzinho (e meus primeiros poemas) num quarto com pôsteres de videogame grudados na parede, num computador que tinha um emulador de Game Boy Advanced nos ícones do Desktop (para jogar Harvest Moon) do ladinho de uma pasta cheia dos .pdfs de grimórios que levei para imprimir na lan house do supermercado (torcendo pro moço que atendia não achar os arquivos bizarros demais). O computador, e quarto, ficavam numa casa de sobrado num pedaço periférico e de classe média baixa da zona sul de São Paulo, no bairro do Campo Limpo.
Dois rituais de desespero por poetas.
A origem digna dela e a paródia absurdista minha.
O ritual, evidentemente, não deu em nada. Eu virei ateu de vez logo depois disso (já era antes desde os 11 anos quando rompi com o cristianismo, o período da goétia foi uma “tentação” de estudo durante poucos meses. Enquanto ateu “definitivo”, fechei o ciclo de como uma rebeldia religiosa adolescente poderia evoluir para seu ponto mais extremo e irrecuperável. Era mais conclusivo, e digo que foi mais desafiador, crescer ateu e sem ter uma deusa para me remover dos meus exílios. E como ateu fui muito além em tudo, em rebeldias e inconsequências mais concretas, do que fui nos ingênuos e inofensivos rituais demonológicos feitos no chão do meu quarto de madrugada, pensando em como ia no dia seguinte “contar da experiência” aos meus amiguinhos de Habbo Hotel.
O que o ritual demonstrou, no entanto, foi uma espécie de declaração de missão ou obessão de minha parte. Eu queria mesmo amor e conhecimento, inclusive queria essas coisas associadas à escrita, e queria tanto que queria o suficiente para me dar ao ridículo de pedir isso num experimento ritualístico feito aos quinze anos de idade, num momento de últimos resquícios de fé e pensamento mágico no qual eu realmente acreditava que um ritual desses pudesse ter peso, riscos e consequências. Eu acreditava que um bicho do mal, trazido ao meu quarto do Campo Limpo por um triângulo de cartolina, poderia engolir minha alma em troca de inteligência. Quis testar mesmo assim porque a alma parecia menos importante do que a chance, do que a oportunidade, de escrever bem.
O que a Internet fez foi recuperar Inana da linha mais ou menos linear de causas/consequências que a estruturava por milênios para enfiá-la na bagunça da sopinha-de-tudo que é a Internet. Eu, quando adolescente, peguei uma colherada da sopa de letrinhas digital e veio Inana. Pode ter sido sem querer, ou pode querer dizer que uma deusa suméria de quatro mil anos tem uma ótima estratégia digital de rebranding e recuperação de sua reputação.
Por causa do eco último do que tinha sido Enheduana cultuando Inana nos termos mais altos, agora distorcido por séculos brincando de telefone sem fio, quem chegou para mim foi Astaroth como uma imagem abjeta, mas reitero, digna pelo menos de interação.
Eu, um brasileiro de classe média do século vinte e um. Usando a Internet. Cheguei nisso aos quinze anos, entre uma passada e outra pelo “Battleball & Snowstorm Lounge” do Habbo.
Porque palavras.
Numa tabuinha de argila, depois na bíblia, depois num grimório medieval, depois num .pdf que achei num arquivo .zip nos cafundós da Internet.
08. O que fiz e meu ridículo

Segui escrevendo e estudando depois disso.
É divertido pensar que na mesma época em que brinquei de chamar Astaroth, eu estivesse descobrindo que gostava de poesias. É também dos meus quinze anos o primeiro poema que fiz do qual senti algum orgulho.
Passei o resto da minha vida lendo e fazendo poesia, às vezes mais, às vezes menos. Pelo caminho das letras, estudei o suficiente para fazer faculdade, pós, mestrado, para me tornar autor e professor. Pela poesia e pela escrita fui articulando meus problemas, disso fui para a análise, dai aprendi a restruturar minhas emoções e relacionamentos. Por isso, consegui ser minimamente funcional emocionalmente para enfim conseguir me apaixonar direito, me relacionar de um jeito estável, namorar e casar.
E enquanto tudo isso acontecia, seguia escrevendo e lendo, livros e mais livros, escrevendo e lendo, poesias e mais poesias, escrevendo e lendo…
Meu ateísmo também evoluiu eventualmente e só me deixou menos burro muito mais tarde. Antes disso, ano após ano, a cada vez que eu lia ou escrevia um verso estava realizando, sem saber, um pequeno ritual para a mesma coisa que me fez acender aquela vela verde do lado de um triângulo de cartolina lá atrás.
Não é ridículo só que eu tenha feito lááá em 2010 um ritual de goétia aos quinze anos enquanto contava a experiência para meus amigos adolescentes via MSN. É ridículo que seja sedutora a interpretação de que, por um caminho torto e paciente, quinze anos depois o ritual pareça ter funcionado.
Que eu tenha, ao encontrar Enheduana, reinterpretado e relido tudo isso.
Que eu tenha contextualizado meu absurdo nessa nova perspectiva de milênios, como uma vírgula pertinho do fim do texto já dentro da mais recente notinha de rodapé da história da mais antiga poesia da humanidade, da coisa mais bonita a acontecer na história do mundo.
Isso sim é ridículo.
Que eu aos trinta anos tenha a coragem, a ousadia ridícula, de escrever isso e de vincular uma sacerdotisa de quatro mil anos atrás aos meus poemas no Medium durante minha juventude.
Que eu associe Enheduana ao grimório, que por isso eu tenha me vinculado sem querer à linhagem literária tortuosa de Inana.
Que tudo isso só pareça fazer sentido porque numa madrugada de 2010 baixei um .pdf pelo Firefox quando tinha acabado de entrar no Ensino Médio, um arquivinho em que eu passei o olho e me chamou a atenção, que me fez semanas mais tarde comprar uma vela verde numa loja de R$1,99.
Que por isso, pelo ritual desastrado que fiz, eu tenha guardado o .pdf numa pastinha chamada “achados” dentro de outra pasta chamada “antigos” dentro da pasta “downloadinhos antigos do XP”, que eu tenha levado essa pasta através de HDs ao longo dos anos do Windows XP até a pasta arquivos do WhatsApp na nuvem e a um cantinho do meu Windows 11 com uma IA embutida que pode me contar tudo sobre Inana (alucinando nos detalhes mais obscuros) em meados de julho de 2025.
Ridículo!
É ridículo que através de qualquer funil de vieses e interesses curados algoritmicamente, de qualquer jornada de UX planejada numa sala de reuniões, de qualquer reunião que viabilizou a publicação desse texto de qualquer jeito a qualquer um, que com tudo isso você, leitor único, tenha chegado a esse parágrafo, lido esse meu surto delirante de psicose poética inteiro até aqui e que eu tenha com isso te obrigado, pessoa brasileira com um celular que serve para ver vídeos curtos no Tiktok e perguntar se vai fazer calor no domingo para uma IA, a sair dessa leitura ciente da história da primeira poesia com autora do mundo.
Ridículo, ridículo que exista todo um pequeno movimento na Internet de gente conversando e produzindo memes sobre sumérios em grupos de Facebook com nomes do tipo “neste grupo fingimos que somos pessoas na Internet do colapso da Idade do Bronze”.
E depois dos quinze anos, foi só na época da pandemia, mais ou menos por 2020 (uma década depois, portanto, de quando acendi uma velinha para Astaroth) que comecei a estudar os sumérios.
E fui estudando eles mais e mais conforme fui entendendo seus vínculos tanto com os semíticos (o que me levou a começar a estudar as origens da bíblia e da mitologia monoteísta semítica de acordo com a mitologia semítca anterior polteísta), quanto com os gregos clássicos (vide Astarte/Afrodite).
Poucos anos depois de ter lido Odisséia, li a narrativa de Gilgámesh (na sensacional e recente versão brasileira, Jacyntho Lins Brandão merece todos os louros pela tradução comentada que fez — e quero ler a versão dele do Enūma Eliš agora). Li sobre Ea-nasir, um mercador de cobre de má-qualidade dos sumérios que virou um meme na Internet entre os interessados em idade do bronze (sim, esse nicho existe).
Ele é talvez a pessoa comum mais antiga da história do mundo a ser nomeada… Numa plaquinha de um de seus clientes reclamando que a qualidade do cobre que Ea-nasir estava vendendo era horrível.

E achei, finalmente, Enheduana.
Os textos sumérios ficaram embaixo da terra por milênios. Sobreviram muito bem, muito melhor do que textos em papiro sobreviveriam, porque foram escritos em tábuas de argila que são resistentes. Se um incêndio acontecesse na biblioteca de Alexandria, adeus para tudo lá dentro. Se um incêndio acontecesse numa biblioteca em Ur, as tabuinhas endureciam e viravam basicamente imortais, resistentes ao clima do deserto, guardadas embaixo da terra esperando algum desocupado cavar fundo o suficiente para encontrá-las.
A partir dos séculos dezoito e dezenove, o iluminismo estruturou um séquito particular de desocupados o suficiente, os acadêmicos e arqueólogos que começaram a achar toda a literatura suméria que temos hoje.
O que encontramos nos textos sumérios é, portanto, um presente milenar que pulou gerações e mais gerações para chegar até nós. Se eu tivesse vivido antes dos escavadores, ou antes da Internet, minha experiência poderia ter acabado no contato com a versão demoníaca de Astaroth num grimório medieval. Era tudo que sobrava.
Hoje, eu posso fazer algo que ninguém pode durante milênios depois que os sumérios se calaram: eu posso ler Enheduana no original, desvinculada de todas as distorções que vieram depois. E o mesmo vale para todos os textos sumérios.
Onde alguém da época de Descartes poderia ler só Homero, eu posso ler tanto Odisséia quanto Gilgámesh e perceber as conexões entre ambos.
Quando Enheduana escreveu seu poema milênios atrás, fez isso com a convicção forte e desesperada de uma vulnerável pessoa num momento de crise num império da idade do bronze. Sua convicção disse: “esse poema que fiz é mágico; ele vai me fazer retornar do exílio e vai ser ecoado para sempre tornando Inana imortal e inesquecível”.
Era isso que ela esta dizendo.
E foi isso que aconteceu. A sorte é sagrada!
Uma rima poética entre milênios.
Inana sobreviveu como eco distante, corrompida em demônio, por séculos.
Até ser recuperada inteira, na beleza de seu original, com a voz da autora que lhe deu vida, quatro mil anos depois.
09. Imortalidade escrita, concreta e digital

Hoje, Inana e Enheduana são imortais.
Estão na Internet e estas histórias todas que estou contando (tirando os detalhes de como eu mesmo entrei nisso tudo) são famosas e replicadas por vários leitores. O caminho foi tortuoso, é verdade, mas com paciência elas viajaram desde a tabuleta de argila até o tablet de silício e vidro.
Há muito conteúdo em inglês a respeito, de releituras ficionais em prosa moderna até infinitos artigos científicos. Eu tenho encontrado cada vez mais conteúdo por acadêmicos brasileiros (e de todos os lados do mundo) refletindo em profundidade sobre literatura suméria. Já faz algumas décadas que figuras como Samuel Noah Kramer, Diane Wolkstein e Betty De Shong Meador já estão propondo, em ensaios e em trabalhos acadêmicos, uma recuperação de Enheduana e de Inana sob essa perspectiva de sua relevância literária e de sua força simbólica para discursos feministas.
Há vários artigos e até livros sobre os sumérios e até mesmo sobre Enheduana na Internet. Achei facilmente no Google, numa pesquisa de dois minutinhos feita agorinha só pra dar um exemplo, um livro inteiro disponível como .pdf no site da Yale, traduzindo Nin-me-šar-ra e comentando a tradução, apresentando ainda o que se sabe e se infere sobre a vida Enheduana. A maioria desse conteúdo está em árido academiquês e em inglês, mas existe. Li muito dele, quando descobri o que procurar. E esse conteúdo todo é mais respeitoso com a burocracia e com o método científico do que sou aqui, portanto também útil.
E aqui estou eu, brasileiro, falando sobre isso agora do meu próprio e esquisito jeito, num ensaio digitado no editor do Medium e publicado primeiramente em plataformas digitais (Medium e Substack), escrevendo em português brasileiro do meu home-office num bairrinho da Zona Leste da capital de São Paulo. Tornando o mundo perdido dos templos no deserto de Enheduana, e o meu próprio do meu bairrinho paulistano que a evoca e ecoa, obrigatórios para quem me conceder sua atenção para uma leitura de uma horinha (poucos e fortes).
Quando quis me tornar escritor, eu me vinculei a uma tradição de escrita de milênios. Quando comecei a escrever poesia aos quinze anos, estava replicando uma tradição da qual Enheduana fez parte quatro mil anos antes de mim.
Os sumérios pariram a escrita e Enheduana pariu um poema que sobreviveu a tudo e se tornou imortal por todas as vozes que o replicaram e replicam, a minha inclusive. Cada voz que o replica faz isso por uma barganha parecida àquela que a própria Enheduana ofereceu a Inana: ser o próximo a recuperar Inana e Enheduana, a dar para ambas a dignidade de suas próprias vozes, é inserir-se também na mesma cadeia forte, resiliente e paciente de sobrevivência pela escrita. É tornar-se um pouco imortal também.
Por milênios, a escrita foi vista como uma atividade masculina. Depois de Enheduana, gerações inteiras de mulheres passaram sem poder nem ler e escrever, quanto mais assinar poemas com seus nomes. Eu mesmo, que sou homem, tive e tenho uma lista de escritores entre os meus lidos que é bem maior do que a lista de escritoras. Eu tenho só agora, mais velho, começado a me esforçar ativamente para tentar equilibrar um pouco as coisas. Eu li Homero (que aliás provavelmente nem foi uma pessoa só), li Shakespeare e li Adam Poe, li todos muito antes de ler o básico do básico mesmo das grandes autoras do dito “cânone” (que me incomoda muito), como Brönte, Dickson ou Woolf. Eu fui introduzido por minha própria família (meu avô) a Pessoa, enquanto Lispector ou Plath são autoras que só fui ter contato por própria iniciativa quando adulto. A próxima grande autora da antiguidade, Safo, só sobreviveu em pequenos fragmentos…
Por todo esse desequilíbrio, também, há um frescor de simbologia irônica e grandiosa em Enheduana. A primeira pessoa a assinar um poema. Uma mulher.
Escondida atrás de Homero por milênios até ser reeencontrada.
Reencontrada com um voto de imortalidade que se torna uma profecia realizada no momento do encontro, da leitura.
Se todo o poema é uma profecia prenunciando um leitor que vai trazer aquilo que foi escrito de volta ao presente, expandindo sua imortalidade, essa é uma tecnologia que Enheduana inventou.
O poema dela foi uma profecia dormente por quatro mil anos enquanto rimas distorcidas e paródias de mal gosto circularam. E quatro mil anos depois, ela foi novamente encontrada por nós, numa nova época que pode ter um novo contato direto com sua voz, e assim ela renasceu imortal novamente no mundo.
Com esse texto, eu contribuí com a tradição milenar, perdida durante milênios e recuperada durante décadas, de lançá-la de novo, vez após outra, geração após geração de leitores, na imortalidade do porvir.
Eu sigo ateu até hoje e estudo muito sobre história. Nenhuma outra coisa que li na minha vida me deixou tão tentado a acreditar em magia do que a voz de uma Enheduana que jurou que seria imortal, sumiu durante milênios e voltou erguida intacta da poeira do deserto para provar que era imortal mesmo e para reabilitar a imagem de sua deusa, Inana.
A poesia foi muito mais forte do que o favor divino.
Mesmo na leitura simbólica, Inana teria “salvo” Enheduana de um exílio quatro milênios atrás. Em troca disso? A poeta instituiu Inana na raiz de toda a tradição literária do mundo e reabilitou a imagem dela depois de milênios de assassinato de reputação com seu livro-chave fora de tiragem.
Ou então a poesia foi tão boa que conquistou a força eterna de um favor divino, ecoando Enheduana eternamente vinculada a Inana pelo que, daqui para frente, será todo o resto da história humana. Como na ambiguidade do próprio poema (“quem salvou quem, quem recebeu boas-vindas?”), que estrutura a mesma dinâmica incerta, aqui tanto faz. Do mesmo jeito que não se separava ainda o religioso do jurídico, também causa e consequência não eram bem separadas ainda (e que bom que não).
No fim das contas, pouco importa a ordem dos fatores para a força simbólica absurda dessa rima deusa/poeta. Depois do exílio de milênios que esqueceu uma e distorceu a outra em demônio, quando as tabuinhas finalmente começaram a ser desenterradas do deserto… Foi como inseparáveis que as duas retornaram. Não é que a deusa tenha feito a poeta imortal, ou que a poeta tenha feito a deusa imortal. Elas se tornaram imortais juntas, num mesmo ato, e nós nos imortalizamos e participamos desse mesmo ato enquanto olhos, enquanto testemunhas.
Lendo e ecoando, nós também retornamos desse exílio, reconstituídos a ser hoje de novo belos por nos lembrarmos da beleza do que já tínhamos sido. Ler o Nin-me-šar-ra me salva do exílio da paródia e restitui minha linhagem, minha dignidade.
Em Enheduana, tudo é sempre mútuo.
A força é tanta que as barreiras entre o que cima e baixo, antes, agora e depois, entre o antiquíssimo e o mais presente momento, entre quem é deusa, quem é escritora, quem é voz leitora ecoando, tudo isso se dissipa.
Toda pessoa que já leu ou escreveu poesia na história do mundo depois de Inana e Enheduana estava emprestando de ambas e, de uma forma oculta, honrando ambas sem saber. Sabendo, honramos melhor. Honramos sabendo que a escrita é um ritual religioso sagrado que Enheduana inventou antes de Homero, antes da Bíblia, antes de Shakespeare.
Ela pariu a poesia e é a mãe de qualquer um que se vincule com ela. Escrever tudo isso é para mim agradecer a quem inventou o que escrevo e que me imortaliza como uma pecinha mínima de sua longa história. Escrever é sempre uma maneira de honrá-la.
E onde na adolescência eu sentia vergonha e ridículo de tentar acender uma vela verde para chamar um pokémon do mal chamado Astaroth, hoje vejo uma beleza ridiculamente profunda em entender que quem eu estava chamando para minha vida era uma força de poesia que me educou e construiu por inteiro por caminhos inconscientes, simbólicos, líricos.
O mal gosto nunca esteve em Inana, nem em Enheduana. Esteve no que as gerações seguintes fizeram com elas: esquecerem-nas, deturparem suas imagens, calarem sua voz.
Elas seguiram, lindas apesar de tudo isso, nos aguardando pacientes abaixo da areia.
10. Arrumando a caixa de fotos da família

Estou aqui escrevendo isso por um sortilégio baixo, uma última e cansada ironia pequena do mal gosto antes dele ser derrotado.
Vou falar comigo na segunda pessoa um pouquinho:
Foi o mal gosto que colocou você, Rodrigo adolescente, um homenzinho poético com ambições de ser amado e de escrever parecendo espertinho, um rapazinho sujo e burro baixando .pdfs de madrugada no fundo fedido do teu quarto escuro de adolescente, foi o mal gosto que colocou você a ser quem ainda sobra e serve para conversar com Inana no atual contexto, removido das raízes por milênios de tempo e por milhares de quilômetros, como um brasileirinho atual redescobrindo sem querer via um blospot de goétia (com gifs de foguinho pixelado no fundo) uma foto de família de sua tatatatatata(…)ravó suméria que você nem sabia que tinha tido.
A foto que você achou em 2010 estava toda rabiscada com um bigode por cima da original, um sorriso bangela, um pintocóptero no cantinho superior, e você achou que era isso aí mesmo, essa devia ser Inana… Não, opa, “Astaroth”, é o nome na foto rabiscada. E essa foto por algum motivo esquisito parece se vincular com seu gosto de brasileirinho por escrita, sem vocêentender direito o motivo… Até você deixar um pouco de ser moleque, crescer e amadurecer só um cadinho, estudar um tanto mais e achar sem querer em outro canto digital (um artigo acadêmico) uma foto mais antiga, sem as pichações por cima, onde a tatatatatata(…)ravó suméria apareceu dessa vez inteira, intacta, do jeito que realmente era.
Daí você descobre que ela não era ridícula como na foto de antes, mas sim muito inspiradora, uma mulher linda e digna que, ao invés de ser o demônio Astaroth que você achou que era antes, chamava-se na verdade Inana e gostava muito de poesia (como você também gosta, veja a coincidência! você teve a quem puxar…). Ela tinha inclusive uma poeta, Enheduana, que a imortalizou inventando a poesia.
Quem tinha rabiscado a foto que você achou antes foi algum tatatatata(…)ravô monoteísta (menos tas do que a tataravó suméria) seu que algum dia ficou puto da vida lembrando das tretas antigas de algum almoço de domingo. Magoado, ele resolveu difamar Inana para todos os descendentes, rabiscando o rosto dela em todas as fotos que tinham sobrado na caixinha de recordações da família.
Você se sente especial por ser o “primeiro”, depois de gerações, a ver a beleza da foto original, sem ser aquela porcaria que seu tatatatatata(…)ravô rabiscou lá atrás e que por milênios ficou sendo a última e única referência que sobrava.
Você teve sorte porque nasceu depois dos arqueólogos terem recuperado a foto original das ruínas.
Quem se salva com isso não é sua tatatatatata(…)ravó suméria, que seguia sendo a mesma na foto original que ainda existia, independente de você saber disso ou não. Ela estava lá, ainda digna na areia, só que você não a conhecia.
É você, o Rodrigo que lê e escreve poesias desde os quinze anos e que redescobre Enheduana na época dos seus trinta, quem se salva.
Você de nascença veio com o mal gosto de família, legado da revolta do tataravô, mas uma sorte na organização das gavetas te deu a chance de tardiamente recuperar a dignidade da sua própria linhagem e, mais importante, a sua própria dignidade particular.
Quem se salva com a foto original é você, quem vê, não quem sorri na fotografia.
É você quem, depois de gerações vendo e se inspirando em rabiscos e pichações, acaba liberto do mal-gosto por achar a foto original de sua ascendente Enheduana, uma foto lírica cheia de poeira e terra por cima, mas que segue intacta e com uma voz poderosíssima que nenhum de seus ecos, pastiches ou paródias durante milênios poderiam ter feito mais do que só emular.
Recupera-se sua própria dignidade presente diante da farsa milenar do ridículo. A dignidade de nunca mais ser burro pensando em escrever por “Astaroth”, um bichinho do mal. Escrever por Inana, por Enheduana. Por um ritual mais antigo e poderoso, bem como muito mais bonito, do que qualquer coisa que a goétia e a demonologia cristã possam elaborar. Um ritual de poesia.
Depois do desafino distorcido das difamações, você encontra a música e beleza da harmonia na voz poética original.
Sorte a sua, Rodrigo.
Então digo: torno-me agora parte do movimento histórico coletivo que busca desmentir e desfazer a fofoca mesquinha que difamou e profanou a reputação de nossas tatatatatata(…)ravós, Inana e Enheduana.
Escrevo isso ciente desse privilégio e de como entender agora o papel histórico de Enheduana e a beleza de sua poesia firmaram de vez, na base mais digna que já tive na vida, meu pacto com a tradição da escrita que me move desde criança.
Por isso, tento com a escrita desse longo ensaio/ode participar minimamente do processo que pede desculpas a ambas, Inana e Enheduana, pelos vacilos das gerações que as representaram incorretamente com as mais triviais, mesquinhas e fúteis das fofocas de família.
Qualquer dignidade que possamos ter culturalmente passa por isso e por um reconhecimento mais profundo sobre o papel desse par poeta-deusa na base de tudo que temos hoje de literário.
Qualquer dignidade do homem também passa por isso, em especial o homem poeta, e fico feliz de ser o homem que está escrevendo isso aqui com ciência do meu papel secundário e estúpido (um alívio cômico pós-moderno, paulistano, cosmopolita e que fica demais estudando sobre sumérios na Internet). Sou um nada, um tiquinho, nessa grande história da escrita sob a perspectiva de suas esquecidas mães.
Leiam, citem, ensinem Enheduanna e suas autoras descendentes. Especialmente se você for homem, este é o caminho para uma relação honrosa inclusive com sua própria masculinidade. Aqui, curvar-se é erguer-se. Curvem-se comigo e ascendam também.
Vocês falam tanto de família, então posso contar vantagem de volta: enquanto na literatura vocês são uns filhos sem mãe criados por um pai sozinho e magoado, eu já estou aqui feliz e inteiro do outro lado da história, com pai e mãe da poesia devidamente registrados na minha certidão de nascimento. Minha familia literária é mais funcional do que as tuas e tenho o dobro do que aprender em comparação com vocês porque minha mãe poeta sabia da missa a metade e fez questão de me ensinar muita coisa.
A poesia dos clube do bolinha que nós homens fizemos e fazemos veio toda, todinha, emprestada. Roubada, na verdade. Portanto antes de vocês, rapazes, tomo a dianteira e me dou bem sendo quem fica sorrindo fofinho na foto do almoço de família da reconciliação. Aqui, honro minhas mães de verso. O melhor que vocês podem fazer é pegar logo uma cadeira e sentar ao lado delas também nesse encontro de domingo da nossa tradição literária finalmente restituída e completa.
(E, já que chances assim raras, vou aproveitar a minha: poetas brasileiros, se for necessário, se forem bobos o bastante para isso, invejem-me! Saibam disto: vocês não podem rir mais alto do que eu mesmo já ri do absurdo de ser eu quem acabou escrevendo isso, euzinho, um homem brasileiro escrevendo alucinado em 2025 um ensaio sobre a primeira poeta de quatro mil anos atrás e sobre como ela me alcançou através dos meus tempos de Habbo Hotel.)
Elas não precisavam de mim.
Estão cantando sobre Inana pra todos os lados, as mulheres das palavras especialmente, desde que os textos sumérios começaram a ser desenterrados do deserto. Ainda era 1978 quando a famosa folclorista Marta Weigle recuperou Enheduanna sob uma perspectiva feminista. Isso foi há quase cinquenta anos. Nada de novo aqui para ela, ou para outras mulheres que se importam.
Só pra mim é novidade.
Quem precisava disso sou eu.
Quem sai salvo, participando da dignidade da verdade, sou eu.
Conhecer a mãe é um privilégio que a poesia concede a raros homens das letras e fico feliz em honrar minha dívida e culpa com essas minhas figuras maternas históricas, mitológicas, literárias, poéticas. Eu as honro tomando a tarefa deste ritual de texto feito para contar suas histórias e nomes.
Não há nada mais digno para qualquer homem do que servir de veículo para ecoar, disseminar, reviver a beleza da voz desta mulher.
11. Que se saiba

Quatro mil anos atrás, Enheduana escreveu um poema que prometia tornar-se imortal.
Ela seguiu sendo raiz de todo verso mesmo durante todo o longo intervalo no qual esteve enterrada quieta na areia.
Ficou escondida por séculos e mais séculos e agora somos os primeiros privilegiados em milênios a poder recuperar e redescobrir sua imortalidade.
Nós, hoje, possuímos um privilégio que foi perdido para a maior parte das pessoas que existiram no miolo de meio-tempo entre os primórdios e os mais recentes tempos da literatura.
Só nós, agora, podemos ler, traduzir, interpretar e nos inspirar poeticamente em Nin-me-šar-ra, a semente original de toda poesia que Enheduana pariu para existir ao longo das eras.
Só nós podemos, depois de milênios em que isso não foi possível, perceber como há um traço da beleza dessa mãe da nossa escrita no rosto de todas as poesias posteriores que são sempre suas descendentes diretas. Só nós, depois de milênios, podemos outra vez ouvir e canalizar sua voz. Só nós podemos ecoá-la.
É, é isso.
A coisa mais bonita da história do mundo.
que se saiba, Enheduana, que você foi a primeira poeta com nome,que se saiba que foi mulher, que cultuava uma deusa e que foi a mãe da poesia autoral,que se saiba que você sozinha mostrou que o canto pode ser, num mesmo e único sopro, sagrado, político e íntimo, pessoal e coletivo, momento frágil e teimosamente eterno,que se saiba que vô Shakespeare foi órfão do que não fui, de ti, que teus filhos estão finalmente aprendendo enquanto tuas filhas já cantam vozes lindas, que se saiba;e que se saiba que você invocou a imortalidade com poesia,que se saiba que escreveu Nin-me-šar-ra e que este poema por milênios ficou perdido e que hoje é disseminado, lido e traduzido;que se saiba que você antes elevou e depois restaurou a tua tão amada Inana, com a beleza de tuas próprias palavras,que se saiba que sua escrita fundou a escrita de todo e qualquer posterior panteãoe que se saiba que quando todo e qualquer deus morreu, tua escrita sagrada se tornou em si, dentre todas, a última religião;quatro mil anos depois, por irmanar todos nós sob a poesia que pariu de teu ventre, mãe nossa de todas as letras, sou teu cantor do templo ao entardecer, lamento melódico de gala pela voz de um brasileiro,que se saiba que você fez a coisa mais bonita da história do mundoque se saiba que você nunca será enterrada novamente e que agora sua voz está por toda parte;𒂗 𒃶 𒌌 𒀭 𒈾, Enheduana, 𒍝 𒃶 𒍪 𒀀𒀭, que se saiba!
LEITURAS COMPLEMENTARES
Para além das mencionadas e linkadas ao longo do texto, deixo mais algumas leituras e fontes legais pra expandir e complementar:
GOSWAMI, Ananya. Life and legacy of Enheduanna: history’s first author and poet. 2022. Disponível em: https://medium.com/@sparklingwords07/life-and-legacy-of-enheduanna-historys-first-author-and-poet-cd41495ad27e. Acesso em: 24 jul. 2025.
(Uma introdução acessível sobre Enheduana. Deixo aqui porque está de graça no Medium, mas em inglês.)HELLE, Sophus. Enheduana: the complete poems of the world’s first author. New Haven: Yale University Press, 2023. Disponível em https://yalebooks.yale.edu/book/9780300276763/enheduana/
(Obra organizada e traduzida por Sophus Helle, reunindo os poemas atribuídos a Enheduana com comentários acadêmicos. Em inglês.)WOLKSTEIN, Diane; KRAMER, Samuel Noah. Inanna, Queen of Heaven and Earth: her stories and hymns from Sumer. New York: Harper & Row, 1983. Disponível em: https://www.amazon.com/dp/0060908548. Acesso em: 24 jul. 2025.
(Tradução clássica das histórias e hinos da deusa Inana, com comentários arqueológicos. Em inglês.)WEIGLE, Marta. Mulheres como artistas verbais: recuperando as irmãs de Enheduanna. Frontiers: A Journal of Women Studies, v. 3, n. 3, p. 1–9, 1978. Disponível em: https://doi.org/10.2307/3346320. Acesso em: 09 ago. 2025.
(Mencionei no ensaio e vale reforçar: esse aqui foi o primeiro trabalho de relevância a apresentar Enheduanna sob uma perspectiva feminista.)MEADOR, Betty De Shong; GRAHN, Judy. Inanna, Lady of Largest Heart: poems of the Sumerian High Priestess. Austin: University of Texas Press, 2001. Disponível em: https://utpress.utexas.edu/9780292752429/. Acesso em: 14 ago. 2025.
(Tradução poética e análise sobre os textos de Enheduana, com foco feminista. Das mais fortes e inéditas visões políticas do texto. Em inglês.)BERNABÉ-SÁNCHEZ, Estefanía; POZZER, Kátia Maria Paim. EU, ENHEDUANNA. Revista Enunciação: Revista do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRRJ, Seropédica, RJ, v. 8, n. 2, p. 1–21, 2023. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/274773. Acesso em: 24 jul. 2025.
(Artigo acadêmico brasileiro que aborda Enheduana sob a perspectiva filosófica e de gênero. O melhor sobre isso gratuito em português.)DAY, John; Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan. Bloomsbury Publishing, 2002. Disponível em: https://www.bloomsbury.com/us/yahweh-and-the-gods-and-goddesses-of-canaan-9780826468307/. Acesso em: 24 jul. 2025.
(O aspecto mais simplificado de todo este texto é a linha do tempo que vai de Inanna a Astarte e, depois, a Astaroth, e sua relação com o monoteísmo. Foi de propósito, mas deixo aqui uma referência acadêmica séria corrigindo meu reducionismo para aprofundar. Explica bem como o monoteísmo surgiu de panteões anteriores e passou a se relacionar com entidades “concorrentes”. Em inglês.)HELLE, Sophus. Enheduana and the Invention of Authorship. New Haven: Yale University Press, 2023. Disponível em: www.researchgate.net/publication/334367889_Enheduana_and_the_Invention_of_Authorship/. Acesso em: 14 ago. 2025.
(Outra questão em que fiz questão de não me enfiar porque melaria a poesia da coisa toda é o debate acadêmico sobre quem, quando ou o que foi “o primeiro” (Enheduana, escrita suméria, poesia autoral etc.). Um monte de autores discutem isso, mas volto a citar Helle porque a perspectiva dele considerando a “primazia” de Enheduana como um projeto cultural posterior se trata, de longe, da minha visão favorita.)GIBIM, Fabiana Vieira; CORRÊA, Rodrigo; PEGUINELLI, Alex (Coord.). Inana: antes da poesia ser palavra era mulher. Tradução de Guilherme Gontijo Flores e Adriano Scandolara; prefácio de Kátia Pozzer; preparação de Fabiana Gibim; revisão de Alex Peguinelli; capa e projeto gráfico de Rodrigo Corrêa. São Paulo: Sobinfluência, 2022. 136 p. Disponível em: https://sobinfluencia.com/produtos/inana-antes-da-poesia-ser-palavra-era-mulher/. Acesso em: 24 jul. 2025.
(Isso aqui é lindo: disponível como livro e e-book, tradução de Nin-me-sar-ra was por pessoas brasileiras, em português brasileiro, com comentários sobre a leitura, comentário narrativo, notas de estrutura, leitura dos originais.)Uma menção final e enfática vai para https://enheduana.org, outro projeto por Helle, o melhor lugar online que encontrei para os textos dela. A tradução deles de Nin-me-šar-ra (disponível aqui) é a minha versão favorita na internet. Serviu como âncora séria e rigorosa para as interpretações mais free-style que soltei nesse texto todo. As notas de tradução deles também são ouro puro e me ajudaram muito nas reflexões que fiz aqui, especialmente nos insights sobre a ambiguidade dos versos citando “boas-vindas” e a questão do termo “nugig”.
SOBRE O AUTOR
Não costumo fazer isso, mas considerando a possibilidade desse texto chegar sozinho a quem talvez não me conheça e tenha interesse em saber quem diabos é esse maluco, deixo abaixo uma pequenina apresentação de minha pessoa (que roubei e adaptei do meu perfil na Audible).
Rodrigo (1995) é escritor, redator, UX Writer, professor e mestre em Comunicação. Atualmente, atua como redator na Uá Uá. Antes disso, trabalhou por três anos como redator e UX Writer na PYXYS, após quatro anos como redator na CTRL+D. Também lecionou a disciplina de Redação Publicitária no programa de pós-graduação do Centro Universitário Belas Artes.
Graduou-se em Publicidade pela Faculdade Cásper Líbero em 2017, concluiu a pós-graduação em Escrita UX pelo Instituto de Desenho Instrucional em 2020 e obteve o título de mestre em Comunicação (também pela Cásper) em 2022.
Escreve de tudo um pouco: de artigos a poemas, de roteiros a interfaces de aplicativos, passando por livros de ficção, contos fantásticos, catálogos técnicos e apresentações em PowerPoint. Mantém publicações ocasionais no Medium. Como poeta, é um dos membros mais antigos do maior portal de poesia da plataforma, o Fazia Poesia.
Em junho de 2022, publicou seu primeiro livro pela Editora Casatrês, com o título inusitado “NFTs, influencers e a música ࿃ूੂ࿃ूੂੂ࿃ूੂOOOOOOOOOOOO ̟̞̝̜̙̘̗̖҉̵̴̨̧̢̡̼̻̺̹̳̲̱̰̯̮̭̬̫̪̩̦̥̤̣̠҈͈͇͉͍͎͓͔͕͖͙͚͜͢͢͢͢͢͢͢͢͢͢͢͢͢͢ͅ ooooooooo do artista ⣎⡇ꉺლ༽இ•̛)ྀ◞ ༎ຶ ༽ৣৢ؞ৢ؞ؖ ꉺლ”, obra que investiga o processo de formação e saturação das tendências digitais e sua relação com a experiência do usuário — especialmente em situações em que essa experiência é propositalmente restringida, conceito que vem desenvolvendo sob o nome de “Anti-UX”.
Tem ainda três livros de ficção publicados pela Amazon. “Eu Só Existo às Terças-feiras”, lançado em 2022, foi finalista entre mais de mil inscritos no primeiro Prêmio Amazon de Literatura Jovem, o que lhe garantiu uma adaptação em audiobook pela Audible. Em 2023, lançou “Verde Verdade”, uma desconstrução dos romances de andarilhos. Já em 2024, publicou a ficção científica filosófica “Éramos Deuses”.


Que ensaio incrível, Rodrigo! Parabéns e obrigado!